O Brasil e suas aberrações contemporâneas: a democracia em profunda crise existencial




O Brasil e suas aberrações contemporâneas: a democracia em profunda crise existencial




“Assim, a espécie humana dividida em rebanhos de gado, nos quais cada um tem seu chefe para devorá-lo.” Rousseau[1]




Rousseau em tempos de ressignificação



Filósofo suíço, iluminista do século XVIII que inspirou a Revolução Francesa, Rousseau (1712-1778) defendia a organização da sociedade civil que tem em si a “soberania”, “a vontade geral” que pode ser definida como autonomia e também a garantia do exercício dessa autonomia pelo coletivo de indivíduos que forma o povo. Ele acreditava que “o homem nasce livre” e o Pacto Social, sua obra mais emblemática, aborda a maneira pela da qual os homens podem exercer a sua liberdade individual respeitando os interesses coletivos através dos acordos firmados entre a sociedade e o Estado. A “soberania” do Estado, nesse sentido, nada mais é que a “vontade geral” do povo representada pelo Estado e, embora o Estado tenha esse privilégio, a “vontade geral” não poderia ser alienada.


“O pacto social estabelece entre os cidadãos uma tal igualdade, que eles se comprometem todos nas mesmas condições e deve todos gozar dos mesmos direitos. (...) todo ato de soberania, isto é, todo ato autêntico da vontade geral, obriga ou favorece igualmente todos os cidadãos. Rousseau” [2]


Se a filosofia de Rousseau influenciou a Revolução Francesa e forneceu as bases teóricas do Estado Moderno (considerando em específico o Brasil e em geral a geopolítica mundial), alguma coisa está errada. Muita coisa está errada. Os especialistas e críticos de Rousseau conhecem o seu aporte teórico melhor que eu e por esse motivo não irei aprofundar-me no tema.  Além disso, precisamos contextualizar:  sua obra foi concebida para uma sociedade francesa do Século XVIII subjugada pelo despotismo da monarquia, o que talvez possa justificar a sua inadequação para uma sociedade do século XXI.
Contudo, penso que Rousseau, outros filósofos e demais correntes de pensamento são fundamentais, e que precisamos conhecer suas idéias para tentar compreender o mundo em que vivemos. Nesse sentido, diante da vigência de sua teoria e da ausência de outras que possam substituí-la ou complementá-la, julgá-lo é um despropósito, afinal ele acreditava que “o homem nasce naturalmente bom e que a sociedade o corrompe”. Também que a instituição da justiça e da paz poderiam submeter tanto o homem poderoso quanto o fraco. Ou seja, Rousseau partiu do da tirania monárquica francesa para idealizar uma sociedade perfeita, equânime. Ele não sabia que o seu pensamento ideal iria ser utilizado pela Revolução Francesa e nela, que Robespierre iria usar a guilhotina para cortar cabeças indiscriminadamente, nem sabia que o seu Pacto Social iria ajudar a formar o Estado moderno. Também não tinha meios de adivinhar que o Estado poderia tornar-se autoritário através das ditaduras; não conhecia o capitalismo e que ele poderia utilizar o Estado como uma ferramenta do neoliberalismo ampliando as injustiças sociais; não sabia que o Estado poderia ser convertido em um instrumento de controle, violência e terror. Rousseau não sabia que alienar o direito civil ao Estado iria acabar desenvolvendo uma nova elite: a dos políticos.
“Ressignificar” Rousseau consiste, nesse sentido em contextualizar suas idéias ao nosso tempo sem, no entanto esquecer em que circunstâncias foram desenvolvidas, levando em consideração que de alguma forma todos os grandes pensadores se equivocaram. Para mim o pensamento de que “o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe”, nos permite uma rica e necessária (embora contraditória) reflexão. Afinal, a sociedade não é um ente subjetivo, ela é o coletivo de indivíduos que constituímos enquanto cidadãos. A sociedade e as suas responsabilidades intransferíveis constituem os deveres civis de cada um de nós e então, se somos bons por natureza, como a sociedade que compomos pode ser tão injusta? Tal vez Rousseau não tenha tido tempo de descobrir que não apenas a monarquia seria capaz de exercer a tirania, e teria sido muito interessante um diálogo entre ele e Lord Acton (1834-1902), o historiador britânico criador da famosa frase “o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus[3].


Em tempos pós-modernos, a ressignificação das idéias de Rousseau, segundo as/os politicamente corretos, pode ser considerada uma loucura, porque elas/eles mesmos já definiram quase tudo e quem ousa citar Rousseau pode ser rotulado como parte de uma “linhagem racionalista e revolucionária rousseauniana”, como li em algum lugar. E, no contexto em que encontrei essa definição ela soava quase como um insulto e não quero nem pensar no que dirão por eu haver citado um aristocrata erudito como Lord Acton e seu pensamento fundamentalmente católico, embora a sua afirmação seja uma das mais sensatas a respeito da natureza do poder.
 No fim das contas, a nossa democracia se limita ao pensamento “crítico” que a partir da semântica se posiciona frente às demandas sociais. Até aí tudo bem.  O problema começa quando a “crítica” permanece limitada à semântica e o discurso passa a alinhar-se à censura das idéias defendida pelo “politicamente correto”, uma posição não muito diferente das pessoas que hoje se sentem ofendidas por representações artísticas em museus de arte. Enquanto perdemos tempo discutindo o politicamente correto segundo a “ressignificação” para mudar o sentido de tudo que parece incômodo, lá encima no Congresso Nacional o bando que decide nossas vidas vai muito bem obrigada, em tranqüilo exercício de funções no mínimo discutíveis, em pleno gozo de suas atividades que seriam consideradas criminosas se não fosse sob proteção da imunidade parlamentar e da Constituição que os protege.
 Mas, se a crítica se limita à semântica do “politicamente correto”, ao desconstruirmos a expressão, o que realmente sobra de correto na política atual?



O Brasil pós-moderno é governado por déspotas

Em seu sentido etimológico, o conceito déspota (δεσπότισσα em grego) surgiu como um título bizantino concedido aos filhos ou genros de imperadores. Atualmente o conceito refere-se ao governante que exerce autoridade arbitrária, tirana ou absoluta. Teoricamente falando, o despotismo não pode conviver em harmonia com uma sociedade democrática e republicana. Porém, os escândalos do Palácio do Planalto contradizem essa lógica e nos fornecem elementos do exercício arbitrário da autoridade, justificados pela compra e venda de consciências no balcão de negócios do Congresso Nacional e legitimados pela Constituição Federal, fórum máximo de autoproteção dos políticos.
Pensando no Brasil eu diria que os déspotas que governam o país se transformaram na elite mais poderosa de todos os tempos, apoiados por um passado histórico escravagista e crescentes desigualdades sociais. Representar a “vontade geral” (conforme concebeu Rousseau) através do voto representativo afastou-nos do debate político, dos nossos interesses coletivos e principalmente: não apenas alienamos nossa autonomia, nos transformamos em uma sociedade alienada.
O “Fundo Especial de Financiamento da Democracia”, a proposta de reforma política que custaria o escandaloso valor de 3,6 bilhões de reais aos cofres públicos para a campanha de 2018, felizmente não passou no Congresso Nacional, mas sua proposta constituiu outra prova contundente da natureza das relações políticas atuais. Tive certeza que a democracia brasileira foi convertida em uma banca de negócios quando em cadeia nacional ouvi que “a democracia tem seu custo”, como afirmou o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) e ele não se referia aos valores morais dela, e sim ao desperdício de dinheiro público para financiar o enriquecimento ilícito da casta política e o desmonte do país afundado em uma profunda crise.
O custo da democracia deveria ser o de escolas e hospitais construídos, um sistema de saúde eficiente, a alimentação com preços acessíveis, e assegurados todos os direitos constitucionais que figuram como letra morta na Magna Carta. Contudo, atualmente a “ressignificação” - dos conceitos, dos modos e talvez das consciências- que defendem as/os politicamente corretos defina essas exigências como ferramentas do populismo ou pior ainda, como paternalismo. No mundo que essa nova sociedade aspira, vemos desenhar-se um indivíduo doutrinado a ser responsável pelas mazelas sociais e, para além da ressignificação e do semanticamente correto, convencer-nos que o coletivo civil é responsável pelas responsabilidades que o Estado não quer assumir, embora seja sua responsabilidade institucional.
Assim como a massa multiforme que em 2013 saiu às ruas para exigir o “Fora Dilma” e hoje se cala diante das barbaridades de Temer e sua quadrilha, a expressão política que pretende representar-nos se configura “sem”: sem programa, sem direção, sem definição, sem caráter, sem vergonha. Já não existe uma definição clara entre direita ou esquerda, apenas interesses que os partidos políticos compartilham ou não, incapazes de expressar a força de uma democracia legítima, e sim a sua decadência.
É humilhante e vergonhoso tudo o que estamos vivendo. Com certeza o Sistema Único de Saúde (SUS) não recebe um investimento anual de 3,6 bilhões de reais, como pretendiam os déspotas que nos representam ao proporem a criação do “Fundo Especial de Financiamento da Democracia” e imagino que, sucateado como está, esse valor seria pouco para as necessidades do SUS. Ao invés de investir em uma educação de tempo integral, de qualidade e gratuita, fragmentam o ensino e assim o desenvolvimento da própria sociedade. Não lhes interessa que o povo questione, o povo não deve pensar e sim trabalhar em um regime análogo ao de escravidão porque o salário mínimo não garante as necessidades de nenhum trabalhador. Ou trabalhas ou pensas, e quando o trabalhador pensa, pensa em não perder o emprego para não morrer de fome.
Ainda que insistam em afirmar que “as instituições brasileiras funcionam perfeitamente”, numa tentativa desesperada para ocultar a briga de forças entre o Legislativo e o Judiciário, está claro que se o fazem é através de um pacto (i)moral para não permitir que haja uma ruptura institucional e fingem que a democracia brasileira vai muito bem obrigada.
Ora, esse pacto se consolida na efetiva falência da democracia brasileira onde menos de 10% dos deputados são eleitos pelo voto direto e a maioria absoluta  de 90% dos congressistas são eleitos pela legenda. Essa democracia, representada por políticos que nem sabemos de onde saiu acabou corrompida em todas as suas estruturas para o benefício dos interesses políticos e econômicos da minoria que manda no país e no destino de nossas vidas. Podemos dizer que hoje as empresas mandam e desmandam, e que os políticos se converteram na mais poderosa casta social do país, poder esse que representa as elites que desde sempre determinaram os caminhos da massa assalariada e antes escravizada. Podemos dizer que as empresas Odebrecht e JBS são apenas a ponta do enorme iceberg de empresas corruptas e corruptoras sócias do pregão da bolsa de valores em que se converteu a política nacional.
Não é exagero definir aos políticos como casta social, muito diferente da classe de trabalhadores, os políticos possuem privilégios inimagináveis para os demais cidadãos e ainda contam com a possibilidade de aumentar o seu poder através de redes familiares e sociais, cujos mandatos passam de pai para filho como o faziam os déspotas da monarquia européia. A família Sarney (Maranhão), a família Neves (Minas gerais) e a família Arraes (Pernambuco)[4] , entre outras menos conhecidas estão presentes em cada cidadezinha interiorana. Essas famílias tão comuns na construção da identidade nacional,   desfrutam o status de “famílias tradicionais”, símbolo de desenvolvimento local histórico, quando na verdade roubaram terras aos povo indígenas, escravizaram africanos, assassinaram índios, exploraram e seguem explorando cidadãos e são, na verdade o maior motivo de subdesenvolvimento local e nacional. Essas famílias são a base da corrupção que eclode a outros níveis em escala nacional.
Analisemos por um momento as condições do pós-modernismo, uma tendência sócio-cultural da sociologia histórica bastante difundida após a queda do Muro de Berlim, do fim da União Soviética e na crise ideológica causada pelos fatores mencionados anteriormente: hiperrealidade, fragmentação, reversão de consumo e produção, descentralização do sujeito e justaposição paradoxal.  No processo pós-moderno brasileiro, a hiperrealidade, categoria condicionante do pós-modernismo, extrapola a imaginação mais pessimista na qual a ressignificação é ferramenta para a imobilidade e imutabilidade do tecido social. A fragmentação, mutou da lógica economicista para as relações políticas das classes sociais reivindicadoras. A reversão do consumo e de produção não decorre de uma nova visão crítica e anticonsumidora, mas de uma drástica capacidade de consumo no qual uma família assalariada mal tem condições de alimentar-se dignamente e de empresas que produzem apenas no limite de suas vendas ( o que lhes permite não reduzir o preço final do produto em caso de produção excedente), evitando prejuízos e também a queda de preços. Segundo os pós-modernistas a descentralização do sujeito ocorreria através do conflito entre o sujeito e o objeto, sem que o sujeito pudesse definir quem está no controle. No Brasil pós-moderno a descentralização do sujeito foi implementada pelos interesses externos em formar uma sociedade egoísta, excludente e principalmente tão acéfala quanto os produtos que iria construir como mão de obra barata nas multinacionais. Por fim a justaposição paradoxal,a condição pré-modernista na qual co-existe a contradição de idéias e princípios encontra o seu representante máximo no Congresso Nacional. Justamente ali, onde deveriam ser defendidos e respeitados todos os interesses dos cidadãos em geral, são articulados os interesses individuais de uma minoria privilegiada pela alienação da nossa vontade política e os princípios democráticos que deveriam estabelecer uma sociedade equânime coincide com os vícios forjados em um país de formação  escravagista, cujas práticas do Antigo Regime relutam em ser superadas.

O Consenso de Washington e a adequação da educação brasileira aos interesses da globalização

As necessidades materiais individuais superam as necessidades coletivas do bem comum nessa sociedade individualista do “salve-se quem puder”. Aos educadores e aos intelectuais parece não lhes interessar lembrar (e menos denunciar) que no pano de fundo da globalização está a o Consenso de Washington que em 1992 lançou através da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), um projeto educacional para a América Latina e Caribe, redefinindo as bases da educação desses lugares objetivando a formação de trabalhadores no modelo de “competências e habilidades” a fim de abastecer as multinacionais com mão de obra barata e eficiente para as necessidades que o neoliberalismo passava a exigir.  Na esteira dessas transformações da globalização o trabalhador brasileiro passa a encaixar-se nos conceitos de mercado: empregabilidade, empreendedorismo, flexibilidade, capacidade de resolver conflitos e o perfil do automatismo que anda de mãos dadas com o individualismo, o economicismo e pragmatismo educacional. Não é exagero dizer que a apatia (ou ignorância) que vemos diante do cenário político atual é fruto de uma estratégia internacional muito bem aplicada e definida.

A democracia falida

Temos a constante sensação de que o Brasil está em falência. Quem pode vai ao hospital particular e matricula seus filhos em escola particular, evita os serviços públicos em geral porque de antemão sabe que eles funcionam na mais absoluta precariedade. Acontece que a maioria não pode. A própria democracia está em processo de falência e parece que os políticos flagrados com malas, bolsas e contas no exterior têm muito a ver com essa quebra.
Se “as instituições brasileiras funcionam perfeitamente”, por que o crime organizado se constitui rapidamente em um poder paralelo ao Estado? Por que o sistema de saúde não atende como deveria? Por que as escolas ensinam cada vez menos? Por que a comida é uma das mais caras do mundo em um país que exporta alimentos?
A crise política que iniciou em 2013 efetivamente derrubou o sistema brasileiro, e serve como exemplo para o mundo: o sistema não atende às necessidades do povo porque está corrupto desde suas bases e todos participam de um pacto de silêncio para preservar uma fraude na qual o único interesse do Estado é beneficiar sua casta política para que ela realize os pactos neoliberais que interessam à globalização. Enquanto eles dizem que “as instituições brasileiras funcionam perfeitamente”, estão na verdade dizendo que o show (de horrores) tem que continuar, que o pacto social deve ser mantido para evitar-se o caos. E o caos seria que a elite perdesse seus privilégios e o povo tivesse os seus direitos e necessidades satisfeitos.
Um pequeno exemplo para convidar à reflexão: por que a casta política possui o privilégio de freqüentar hospitais privados (pagos com a contribuição de cada trabalhador) ao invés utilizarem os serviços do SUS?
Basta um pouquinho de bom senso para ver que, enquanto a Operação Lava Jato realiza um teatro de moralidade pretendendo prender todos os corruptos, pela segunda vez Temer, o presidente ilegítimo, faz do Congresso Nacional uma loja de artigos de luxo, descaradamente vendendo privilégios em troca da sua liberdade e  status de máxima autoridade brasileira ameaçados por uma sucessão de escândalos sem precedentes. E isso não é corrupção?
Que democracia é essa que se legitima através de fraudes?
 Que democracia é essa se consolida através de acordos entre compadres?
Que democracia é essa cuja Constituição permite que um governante negocie sua permanência no poder desde o pregão da bolsa de valores do governo?
Que democracia é essa que não atende às necessidades em geral, mas atende aos interesses da elite?
Que democracia é essa que faz da religião como disciplina nas escolas em detrimento da História e da Filosofia?
 Então nosso sistema educacional já não é laico e vamos aprender a temer a Deus ao invés de constituir-nos como seres humanos livres e autônomos apoiados pelas diferentes áreas do saber? Quer dizer que agora, a máfia religiosa que se constitui em partidos políticos no Congresso Nacional, não apenas persegue ao público LGBT, promete a “cura gay” e condena o aborto, também insufla suas ovelhas a fechar museus, atacar peças de teatro e seus adeptos traficantes se vêem com o direito de assassinar, ameaçar e perseguir pessoas praticantes de religiões de matriz africana, descaradamente denunciando  o racismo que sua fé promove?
Quer dizer que o único debate político que merecemos está reduzido aos insultos, ofensas e comentários de senso comum existentes em cada time line do Facebook?

Negligência e exclusão: as políticas públicas do Estado destinada às periferias

Enquanto o projeto da globalização se colocava em marcha nos anos 90 a exclusão crescia a passos largos. As ONGs promoveram uma verdadeira mercadorização da pobreza na qual o assistencialismo tornou-se um nicho lucrativo em escala mundial. No Brasil não foi diferente e um fenômeno particular foi o de movimento de sociólogos determinados a “ressignificar” as favelas como “comunidades”, uma domesticação das rebeldias que viviam à margem da sociedade e tranqüilidade da elite carioca. Todos contentes e felizes. O povo das favelas podia então sentir-se orgulhoso de viver em uma comunidade, lugar onde falta tudo, e o único direito era (e é) o de não ter direitos, mas com cultura e identidade própria. A elite do asfalto por sua vez, beneficiada pela doutrinação dos sociólogos, podia seguir explorando os trabalhadores da favela, com a certeza de que eles sabiam qual era o seu lugar, em uma ordem natural que não seria subvertida.
Aos poucos a miséria das favelas foi convertida em cartão postal e atração turística. Mas me pergunto que sociedade doentia vê na miséria e exclusão social motivo de orgulho? Que tipo de país faz da injustiça social espaço para exploração turística? Hoje podemos constatar que as pessoas da favela não invadiram o asfalto para fazer uma justa revolução, mas as balas dos fuzis do tráfico, essas sim chegaram ao asfalto e todos os dias fazem vítimas inocentes.
A negligência e a exclusão social foram as únicas políticas públicas destinadas às favelas desde a sua origem. Hoje o asfalto carioca que se horroriza com a guerra do tráfico ainda não é capaz de compreender a sua parcela de responsabilidade nesse processo. Talvez a agudização da violência pela primeira vez lhes permita enxergar e questionar-se para além do muro invisível que separa os edifícios imponentes e aquelas milhares de pessoas que vivem apertadas no morro, que diariamente descem as favelas para fazer o Rio de Janeiro funcionar enquanto seu único direito é o de não ter direitos.


Divide et impera

Dividir para vencer, a estratégia política utilizada por Roma  em  338 a.C. para derrotar a Liga Latina arrastou-se pelos milênios chegando aos nossos dias ainda eficiente.
Se na década de 80 a unidade da classe trabalhadora foi fundamental para a derrocada da Ditadura Civil-Militar, com a abertura política iniciando o processo democrático essa unidade passou por um lento processo de fragmentação que segue em expansão e se traduz na diversidade de movimentos existentes: feministas, LGBT’s, contra o preconceito racial, contra o preconceito religioso, etc., na prática, todos contra todos.  Ao mesmo tempo em que a democracia permitiu o surgimento desses movimentos em legítima reivindicação das necessidades dos seus pares, esses movimentos criaram instâncias de militância muito bem definidas que não dialogam com os demais. São vozes dissonantes que não percebem que suas reivindicações são tão legítimas quanto a de outros grupos, tão legítimas quanto as de cada trabalhador excluído pelo sistema  porque se trata de um sistema que não é apenas machista, nem apenas homofóbico, ou pedófilo, ou racista. É um sistema que está contra todos porque é capitalista e não vê o bem comum. Semelhante a um algoritmo tecnológico programado para uma atividade específica, só percebe lucros, prejuízos, capital ativo e passivo. Esse sistema não existe em si mesmo, sua existência deve-se à legitimidade que cada um de nós lhe empresta.  Precisamos dar-nos conta que o sistema, nesse sentido, deixa de ser subjetivo, ele existe e é real, se materializa nas instituições, na pessoa dos políticos, dos grandes empresários, nas famílias “tradicionais” que controlam pequenas e grandes cidades, nos intelectuais que se calam ou naqueles que trabalham para colocar as idéias do poder hegemônico em prática, nas ONG’s que vivem e comercializam a miséria, nos sindicatos que se vendem ao patrão, nos professores que não se preocupam com os caminhos da LDB, nos “coletivos” que se reproduzem com interesses políticos, nos consumidores irresponsáveis, em cada um de nós que alienamos nossos direitos civis e nos tornamos cúmplices do sistema político e econômico que reduz nossa humanidade aos interesses de mercado. Nós fazemos e outorgamos o sistema que nos aniquila.
Concluo pensando que o Consenso de Washington venceu quando alcançou seus objetivos, quando foi capaz de tornar-nos individualistas e incapazes de percebermos que as necessidades não se limitam a grupos, que o coletivo, em sua concepção original é mais amplo que as “minorias” pulverizadas em categorias. Também venceram aqueles que tentaram domesticar e pacificar as favelas, nomeando-as de comunidades sem investir nos direitos sociais que seguem ausentes,.
Concluo pensando que a democracia é uma fraude, e que é necessário aperfeiçoá-la ou criar um sistema que corresponda às nossas necessidades humanas em geral porque assim como o sistema, também precisamos ressignificar o conceito “povo”, e cada indivíduo é uma parcela do conjunto que forma o “povo”, o mesmo povo que se cala e legitimando as injustiças que sofremos pelo 1% de ricos cada vez mais ricos, a elite a quem nunca falta nada.
A crise política e econômica do país é o fracasso da democracia que construímos. É, sobretudo o nosso fracasso como povo, como cidadãos ao permitirmos a manutenção da injustiça histórica através da alienação promovida pelo pacto social democrático.  Assim, fracassados e humilhados no mais profundo da nossa dignidade, alguns de nós, horrorizados testemunhamos o Brasil retroceder aos preconceitos, à ignorância, à  mediocridade, ao egoísmo e à ganância do despotismo amparado por essa  democracia que tantos morreram para que fosse restaurada.
Acontece que essa democracia não é a que nós merecemos, nem a que nós queremos. A democracia está por construir-se.


  




[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Ed. Martin Claret. São Paulo, 2013,p.19.
[2] Idem, p. 50.
[3] "Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely in such manner that great men are almost always bad men." Letter to Bishop Mandell Creighton, April 5, 1887. In Figgis, J. N. e Laurence, R. V. Historical Essays and Studies, London: Macmillan, 1907.
[4] Outras famílias de políticos: Collor/Mello (Alagoas), Calheiros (Alagoas), Bornhausen (Santa Catarina), Magalhães (Bahia), Garotinho (Rio de Janeiro), Gomes (Ceará), Maia (Rio Grande do Norte e Rio de janeiro).

Comentários