O Brasil e suas aberrações contemporâneas: a democracia em profunda crise existencial
O
Brasil e suas aberrações contemporâneas: a democracia em profunda crise
existencial
“Assim, a espécie humana dividida em
rebanhos de gado, nos quais cada um tem seu chefe para devorá-lo.” Rousseau[1]
Rousseau
em tempos de ressignificação
Filósofo
suíço, iluminista do século XVIII que inspirou a Revolução Francesa, Rousseau (1712-1778)
defendia a organização da sociedade civil que tem em si a “soberania”, “a
vontade geral” que pode ser definida como autonomia e também a garantia do
exercício dessa autonomia pelo coletivo de indivíduos que forma o povo. Ele
acreditava que “o homem nasce livre” e o Pacto
Social, sua obra mais emblemática, aborda a maneira pela da qual os homens
podem exercer a sua liberdade individual respeitando os interesses coletivos
através dos acordos firmados entre a sociedade e o Estado. A “soberania” do
Estado, nesse sentido, nada mais é que a “vontade geral” do povo representada
pelo Estado e, embora o Estado tenha esse privilégio, a “vontade geral” não
poderia ser alienada.
“O pacto social estabelece entre os
cidadãos uma tal igualdade, que eles se comprometem todos nas mesmas condições
e deve todos gozar dos mesmos direitos. (...) todo ato de soberania, isto é,
todo ato autêntico da vontade geral, obriga ou favorece igualmente todos os
cidadãos. Rousseau” [2]
Se a
filosofia de Rousseau influenciou a Revolução Francesa e forneceu as bases
teóricas do Estado Moderno (considerando em específico o Brasil e em geral a
geopolítica mundial), alguma coisa está errada. Muita coisa está errada. Os
especialistas e críticos de Rousseau conhecem o seu aporte teórico melhor que
eu e por esse motivo não irei aprofundar-me no tema. Além disso, precisamos contextualizar: sua obra foi concebida para uma sociedade francesa
do Século XVIII subjugada pelo despotismo da monarquia, o que talvez possa
justificar a sua inadequação para uma sociedade do século XXI.
Contudo,
penso que Rousseau, outros filósofos e demais correntes de pensamento são
fundamentais, e que precisamos conhecer suas idéias para tentar compreender o
mundo em que vivemos. Nesse sentido, diante da vigência de sua teoria e da
ausência de outras que possam substituí-la ou complementá-la, julgá-lo é um
despropósito, afinal ele acreditava que “o homem nasce naturalmente bom e que a
sociedade o corrompe”. Também que a instituição da justiça e da paz poderiam
submeter tanto o homem poderoso quanto o fraco. Ou seja, Rousseau partiu do da
tirania monárquica francesa para idealizar uma sociedade perfeita, equânime.
Ele não sabia que o seu pensamento ideal iria ser utilizado pela Revolução
Francesa e nela, que Robespierre iria usar a guilhotina para cortar cabeças
indiscriminadamente, nem sabia que o seu Pacto
Social iria ajudar a formar o Estado moderno. Também não tinha meios de
adivinhar que o Estado poderia tornar-se autoritário através das ditaduras; não
conhecia o capitalismo e que ele poderia utilizar o Estado como uma ferramenta
do neoliberalismo ampliando as injustiças sociais; não sabia que o Estado
poderia ser convertido em um instrumento de controle, violência e terror.
Rousseau não sabia que alienar o direito civil ao Estado iria acabar
desenvolvendo uma nova elite: a dos políticos.
“Ressignificar”
Rousseau consiste, nesse sentido em contextualizar suas idéias ao nosso tempo
sem, no entanto esquecer em que circunstâncias foram desenvolvidas, levando em
consideração que de alguma forma todos os grandes pensadores se equivocaram.
Para mim o pensamento de que “o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe”,
nos permite uma rica e necessária (embora contraditória) reflexão. Afinal, a
sociedade não é um ente subjetivo, ela é o coletivo de indivíduos que
constituímos enquanto cidadãos. A sociedade e as suas responsabilidades
intransferíveis constituem os deveres civis de cada um de nós e então, se somos
bons por natureza, como a sociedade que compomos pode ser tão injusta? Tal vez
Rousseau não tenha tido tempo de descobrir que não apenas a monarquia seria
capaz de exercer a tirania, e teria sido muito interessante um diálogo entre
ele e Lord Acton (1834-1902), o historiador britânico criador da famosa frase “o poder corrompe, o poder absoluto corrompe
absolutamente de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus ”[3].
Em
tempos pós-modernos, a ressignificação das idéias de Rousseau, segundo as/os
politicamente corretos, pode ser considerada uma loucura, porque elas/eles
mesmos já definiram quase tudo e quem ousa citar Rousseau pode ser rotulado como
parte de uma “linhagem racionalista e revolucionária rousseauniana”, como li em
algum lugar. E, no contexto em que encontrei essa definição ela soava quase
como um insulto e não quero nem pensar no que dirão por eu haver citado um
aristocrata erudito como Lord Acton e seu pensamento fundamentalmente católico,
embora a sua afirmação seja uma das mais sensatas a respeito da natureza do poder.
No fim das contas, a nossa democracia se
limita ao pensamento “crítico” que a partir da semântica se posiciona frente às
demandas sociais. Até aí tudo bem. O
problema começa quando a “crítica” permanece limitada à semântica e o discurso
passa a alinhar-se à censura das idéias defendida pelo “politicamente correto”,
uma posição não muito diferente das pessoas que hoje se sentem ofendidas por
representações artísticas em museus de arte. Enquanto perdemos tempo discutindo
o politicamente correto segundo a “ressignificação” para mudar o sentido de
tudo que parece incômodo, lá encima no Congresso Nacional o bando que decide nossas
vidas vai muito bem obrigada, em tranqüilo exercício de funções no mínimo
discutíveis, em pleno gozo de suas atividades que seriam consideradas
criminosas se não fosse sob proteção da imunidade parlamentar e da Constituição
que os protege.
Mas, se a crítica se limita à semântica do
“politicamente correto”, ao desconstruirmos a expressão, o que realmente sobra
de correto na política atual?
O Brasil pós-moderno é governado por
déspotas
Em
seu sentido etimológico, o conceito déspota
(δεσπότισσα em grego) surgiu como um título bizantino concedido aos filhos ou
genros de imperadores. Atualmente o conceito refere-se ao governante que exerce
autoridade arbitrária, tirana ou absoluta. Teoricamente falando, o despotismo
não pode conviver em harmonia com uma sociedade democrática e republicana. Porém,
os escândalos do Palácio do Planalto contradizem essa lógica e nos fornecem
elementos do exercício arbitrário da autoridade, justificados pela compra e
venda de consciências no balcão de negócios do Congresso Nacional e legitimados
pela Constituição Federal, fórum máximo de autoproteção dos políticos.
Pensando
no Brasil eu diria que os déspotas que governam o país se transformaram na
elite mais poderosa de todos os tempos, apoiados por um passado histórico escravagista
e crescentes desigualdades sociais. Representar a “vontade geral” (conforme
concebeu Rousseau) através do voto representativo afastou-nos do debate
político, dos nossos interesses coletivos e principalmente: não apenas
alienamos nossa autonomia, nos transformamos em uma sociedade alienada.
O “Fundo
Especial de Financiamento da Democracia”, a proposta de reforma política que
custaria o escandaloso valor de 3,6 bilhões de reais aos cofres públicos para a
campanha de 2018, felizmente não passou no Congresso Nacional, mas sua proposta
constituiu outra prova contundente da natureza das relações políticas atuais.
Tive certeza que a democracia brasileira foi convertida em uma banca de
negócios quando em cadeia nacional ouvi que “a democracia tem seu custo”, como
afirmou o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) e ele não se referia aos
valores morais dela, e sim ao desperdício de dinheiro público para financiar o enriquecimento
ilícito da casta política e o desmonte do país afundado em uma profunda crise.
O
custo da democracia deveria ser o de escolas e hospitais construídos, um
sistema de saúde eficiente, a alimentação com preços acessíveis, e assegurados
todos os direitos constitucionais que figuram como letra morta na Magna Carta.
Contudo, atualmente a “ressignificação” - dos conceitos, dos modos e talvez das
consciências- que defendem as/os politicamente corretos defina essas exigências
como ferramentas do populismo ou pior ainda, como paternalismo. No mundo que
essa nova sociedade aspira, vemos desenhar-se um indivíduo doutrinado a ser responsável
pelas mazelas sociais e, para além da ressignificação e do semanticamente
correto, convencer-nos que o coletivo civil é responsável pelas
responsabilidades que o Estado não quer assumir, embora seja sua
responsabilidade institucional.
Assim
como a massa multiforme que em 2013 saiu às ruas para exigir o “Fora Dilma” e
hoje se cala diante das barbaridades de Temer e sua quadrilha, a expressão
política que pretende representar-nos se configura “sem”: sem programa, sem
direção, sem definição, sem caráter, sem vergonha. Já não existe uma definição
clara entre direita ou esquerda, apenas interesses que os partidos políticos
compartilham ou não, incapazes de expressar a força de uma democracia legítima,
e sim a sua decadência.
É humilhante
e vergonhoso tudo o que estamos vivendo. Com certeza o Sistema Único de Saúde
(SUS) não recebe um investimento anual de 3,6 bilhões de reais, como pretendiam
os déspotas que nos representam ao proporem a criação do “Fundo Especial de
Financiamento da Democracia” e imagino que, sucateado como está, esse valor
seria pouco para as necessidades do SUS. Ao invés de investir em uma educação
de tempo integral, de qualidade e gratuita, fragmentam o ensino e assim o desenvolvimento
da própria sociedade. Não lhes interessa que o povo questione, o povo não deve
pensar e sim trabalhar em um regime análogo ao de escravidão porque o salário
mínimo não garante as necessidades de nenhum trabalhador. Ou trabalhas ou
pensas, e quando o trabalhador pensa, pensa em não perder o emprego para não
morrer de fome.
Ainda
que insistam em afirmar que “as instituições brasileiras funcionam
perfeitamente”, numa tentativa desesperada para ocultar a briga de forças entre
o Legislativo e o Judiciário, está claro que se o fazem é através de um pacto
(i)moral para não permitir que haja uma ruptura institucional e fingem que a
democracia brasileira vai muito bem obrigada.
Ora,
esse pacto se consolida na efetiva falência da democracia brasileira onde menos
de 10% dos deputados são eleitos pelo voto direto e a maioria absoluta de 90% dos congressistas são eleitos pela
legenda. Essa democracia, representada por políticos que nem sabemos de onde
saiu acabou corrompida em todas as suas estruturas para o benefício dos
interesses políticos e econômicos da minoria que manda no país e no destino de
nossas vidas. Podemos dizer que hoje as empresas mandam e desmandam, e que os
políticos se converteram na mais poderosa casta social do país, poder esse que
representa as elites que desde sempre determinaram os caminhos da massa assalariada
e antes escravizada. Podemos dizer que as empresas Odebrecht e JBS são apenas a
ponta do enorme iceberg de empresas corruptas e corruptoras sócias do pregão da
bolsa de valores em que se converteu a política nacional.
Não
é exagero definir aos políticos como casta social, muito diferente da classe de
trabalhadores, os políticos possuem privilégios inimagináveis para os demais
cidadãos e ainda contam com a possibilidade de aumentar o seu poder através de
redes familiares e sociais, cujos mandatos passam de pai para filho como o
faziam os déspotas da monarquia européia. A família Sarney (Maranhão), a
família Neves (Minas gerais) e a família Arraes (Pernambuco)[4] , entre outras menos
conhecidas estão presentes em cada cidadezinha interiorana. Essas famílias tão
comuns na construção da identidade nacional,
desfrutam o status de “famílias tradicionais”, símbolo de
desenvolvimento local histórico, quando na verdade roubaram terras aos povo
indígenas, escravizaram africanos, assassinaram índios, exploraram e seguem
explorando cidadãos e são, na verdade o maior motivo de subdesenvolvimento
local e nacional. Essas famílias são a base da corrupção que eclode a outros
níveis em escala nacional.
Analisemos
por um momento as condições do pós-modernismo, uma tendência sócio-cultural da
sociologia histórica bastante difundida após a queda do Muro de Berlim, do fim
da União Soviética e na crise ideológica causada pelos fatores mencionados
anteriormente: hiperrealidade, fragmentação, reversão de consumo e produção, descentralização
do sujeito e justaposição paradoxal. No
processo pós-moderno brasileiro, a hiperrealidade,
categoria condicionante do pós-modernismo, extrapola a imaginação mais
pessimista na qual a ressignificação é ferramenta para a imobilidade e
imutabilidade do tecido social. A fragmentação,
mutou da lógica economicista para as relações políticas das classes sociais
reivindicadoras. A reversão do consumo e
de produção não decorre de uma nova visão crítica e anticonsumidora, mas de
uma drástica capacidade de consumo no qual uma família assalariada mal tem
condições de alimentar-se dignamente e de empresas que produzem apenas no
limite de suas vendas ( o que lhes permite não reduzir o preço final do produto
em caso de produção excedente), evitando prejuízos e também a queda de preços.
Segundo os pós-modernistas a descentralização
do sujeito ocorreria através do conflito entre o sujeito e o objeto, sem
que o sujeito pudesse definir quem está no controle. No Brasil pós-moderno a
descentralização do sujeito foi implementada pelos interesses externos em
formar uma sociedade egoísta, excludente e principalmente tão acéfala quanto os
produtos que iria construir como mão de obra barata nas multinacionais. Por fim
a justaposição paradoxal,a condição
pré-modernista na qual co-existe a contradição de idéias e princípios encontra
o seu representante máximo no Congresso Nacional. Justamente ali, onde deveriam
ser defendidos e respeitados todos os interesses dos cidadãos em geral, são
articulados os interesses individuais de uma minoria privilegiada pela
alienação da nossa vontade política e os princípios democráticos que deveriam
estabelecer uma sociedade equânime coincide com os vícios forjados em um país de
formação escravagista, cujas práticas do
Antigo Regime relutam em ser superadas.
O Consenso de Washington e a adequação
da educação brasileira aos interesses da globalização
As
necessidades materiais individuais superam as necessidades coletivas do bem
comum nessa sociedade individualista do “salve-se quem puder”. Aos educadores e
aos intelectuais parece não lhes interessar lembrar (e menos denunciar) que no
pano de fundo da globalização está a o Consenso de Washington que em 1992
lançou através da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), um projeto
educacional para a América Latina e Caribe, redefinindo as bases da educação
desses lugares objetivando a formação de trabalhadores no modelo de
“competências e habilidades” a fim de abastecer as multinacionais com mão de
obra barata e eficiente para as necessidades que o neoliberalismo passava a
exigir. Na esteira dessas transformações
da globalização o trabalhador brasileiro passa a encaixar-se nos conceitos de
mercado: empregabilidade, empreendedorismo, flexibilidade, capacidade de
resolver conflitos e o perfil do automatismo que anda de mãos dadas com o
individualismo, o economicismo e pragmatismo educacional. Não é exagero dizer
que a apatia (ou ignorância) que vemos diante do cenário político atual é fruto
de uma estratégia internacional muito bem aplicada e definida.
A democracia falida
Temos
a constante sensação de que o Brasil está em falência. Quem pode vai ao
hospital particular e matricula seus filhos em escola particular, evita os serviços
públicos em geral porque de antemão sabe que eles funcionam na mais absoluta
precariedade. Acontece que a maioria não pode. A própria democracia está em
processo de falência e parece que os políticos flagrados com malas, bolsas e
contas no exterior têm muito a ver com essa quebra.
Se
“as instituições brasileiras funcionam perfeitamente”, por que o crime
organizado se constitui rapidamente em um poder paralelo ao Estado? Por que o
sistema de saúde não atende como deveria? Por que as escolas ensinam cada vez
menos? Por que a comida é uma das mais caras do mundo em um país que exporta
alimentos?
A crise
política que iniciou em 2013 efetivamente derrubou o sistema brasileiro, e
serve como exemplo para o mundo: o sistema não atende às necessidades do povo
porque está corrupto desde suas bases e todos participam de um pacto de
silêncio para preservar uma fraude na qual o único interesse do Estado é
beneficiar sua casta política para que ela realize os pactos neoliberais que
interessam à globalização. Enquanto eles dizem que “as instituições brasileiras
funcionam perfeitamente”, estão na verdade dizendo que o show (de horrores) tem
que continuar, que o pacto social deve ser mantido para evitar-se o caos. E o
caos seria que a elite perdesse seus privilégios e o povo tivesse os seus
direitos e necessidades satisfeitos.
Um
pequeno exemplo para convidar à reflexão: por que a casta política possui o
privilégio de freqüentar hospitais privados (pagos com a contribuição de cada
trabalhador) ao invés utilizarem os serviços do SUS?
Basta
um pouquinho de bom senso para ver que, enquanto a Operação Lava Jato realiza
um teatro de moralidade pretendendo prender todos os corruptos, pela segunda
vez Temer, o presidente ilegítimo, faz do Congresso Nacional uma loja de artigos
de luxo, descaradamente vendendo privilégios em troca da sua liberdade e status de máxima autoridade brasileira
ameaçados por uma sucessão de escândalos sem precedentes. E isso não é
corrupção?
Que
democracia é essa que se legitima através de fraudes?
Que democracia é essa se consolida através de
acordos entre compadres?
Que
democracia é essa cuja Constituição permite que um governante negocie sua
permanência no poder desde o pregão da bolsa de valores do governo?
Que
democracia é essa que não atende às necessidades em geral, mas atende aos
interesses da elite?
Que
democracia é essa que faz da religião como disciplina nas escolas em detrimento
da História e da Filosofia?
Então nosso sistema educacional já não é laico
e vamos aprender a temer a Deus ao invés de constituir-nos como seres humanos
livres e autônomos apoiados pelas diferentes áreas do saber? Quer dizer que
agora, a máfia religiosa que se constitui em partidos políticos no Congresso
Nacional, não apenas persegue ao público LGBT, promete a “cura gay” e condena o
aborto, também insufla suas ovelhas a fechar museus, atacar peças de teatro e
seus adeptos traficantes se vêem com o direito de assassinar, ameaçar e
perseguir pessoas praticantes de religiões de matriz africana, descaradamente denunciando o racismo que sua fé promove?
Quer
dizer que o único debate político que merecemos está reduzido aos insultos,
ofensas e comentários de senso comum existentes em cada time line do Facebook?
Negligência e exclusão: as políticas
públicas do Estado destinada às periferias
Enquanto
o projeto da globalização se colocava em marcha nos anos 90 a exclusão crescia
a passos largos. As ONGs promoveram uma verdadeira mercadorização da pobreza na
qual o assistencialismo tornou-se um nicho lucrativo em escala mundial. No
Brasil não foi diferente e um fenômeno particular foi o de movimento de
sociólogos determinados a “ressignificar” as favelas como “comunidades”, uma
domesticação das rebeldias que viviam à margem da sociedade e tranqüilidade da
elite carioca. Todos contentes e felizes. O povo das favelas podia então
sentir-se orgulhoso de viver em uma comunidade, lugar onde falta tudo, e o
único direito era (e é) o de não ter direitos, mas com cultura e identidade
própria. A elite do asfalto por sua vez, beneficiada pela doutrinação dos
sociólogos, podia seguir explorando os trabalhadores da favela, com a certeza
de que eles sabiam qual era o seu lugar, em uma ordem natural que não seria
subvertida.
Aos poucos
a miséria das favelas foi convertida em cartão postal e atração turística. Mas
me pergunto que sociedade doentia vê na miséria e exclusão social motivo de
orgulho? Que tipo de país faz da injustiça social espaço para exploração turística?
Hoje podemos constatar que as pessoas da favela não invadiram o asfalto para
fazer uma justa revolução, mas as balas dos fuzis do tráfico, essas sim
chegaram ao asfalto e todos os dias fazem vítimas inocentes.
A
negligência e a exclusão social foram as únicas políticas públicas destinadas
às favelas desde a sua origem. Hoje o asfalto carioca que se horroriza com a
guerra do tráfico ainda não é capaz de compreender a sua parcela de
responsabilidade nesse processo. Talvez a agudização da violência pela primeira
vez lhes permita enxergar e questionar-se para além do muro invisível que
separa os edifícios imponentes e aquelas milhares de pessoas que vivem
apertadas no morro, que diariamente descem as favelas para fazer o Rio de
Janeiro funcionar enquanto seu único direito é o de não ter direitos.
Divide et impera
Dividir
para vencer, a estratégia política utilizada por Roma em 338
a.C. para derrotar a Liga Latina arrastou-se pelos milênios chegando aos nossos
dias ainda eficiente.
Se
na década de 80 a unidade da classe trabalhadora foi fundamental para a
derrocada da Ditadura Civil-Militar, com a abertura política iniciando o
processo democrático essa unidade passou por um lento processo de fragmentação
que segue em expansão e se traduz na diversidade de movimentos existentes:
feministas, LGBT’s, contra o preconceito racial, contra o preconceito
religioso, etc., na prática, todos contra todos. Ao mesmo tempo em que a democracia permitiu o
surgimento desses movimentos em legítima reivindicação das necessidades dos
seus pares, esses movimentos criaram instâncias de militância muito bem
definidas que não dialogam com os demais. São vozes dissonantes que não
percebem que suas reivindicações são tão legítimas quanto a de outros grupos,
tão legítimas quanto as de cada trabalhador excluído pelo sistema porque se trata de um sistema que não é apenas
machista, nem apenas homofóbico, ou pedófilo, ou racista. É um sistema que está
contra todos porque é capitalista e não vê o bem comum. Semelhante a um
algoritmo tecnológico programado para uma atividade específica, só percebe lucros,
prejuízos, capital ativo e passivo. Esse sistema não existe em si mesmo, sua
existência deve-se à legitimidade que cada um de nós lhe empresta. Precisamos dar-nos conta que o sistema, nesse
sentido, deixa de ser subjetivo, ele existe e é real, se materializa nas
instituições, na pessoa dos políticos, dos grandes empresários, nas famílias
“tradicionais” que controlam pequenas e grandes cidades, nos intelectuais que se
calam ou naqueles que trabalham para colocar as idéias do poder hegemônico em
prática, nas ONG’s que vivem e comercializam a miséria, nos sindicatos que se
vendem ao patrão, nos professores que não se preocupam com os caminhos da LDB,
nos “coletivos” que se reproduzem com interesses políticos, nos consumidores
irresponsáveis, em cada um de nós que alienamos nossos direitos civis e nos
tornamos cúmplices do sistema político e econômico que reduz nossa humanidade
aos interesses de mercado. Nós fazemos e outorgamos o sistema que nos aniquila.
Concluo
pensando que o Consenso de Washington venceu quando alcançou seus objetivos,
quando foi capaz de tornar-nos individualistas e incapazes de percebermos que
as necessidades não se limitam a grupos, que o coletivo, em sua concepção
original é mais amplo que as “minorias” pulverizadas em categorias. Também
venceram aqueles que tentaram domesticar e pacificar as favelas, nomeando-as de
comunidades sem investir nos direitos sociais que seguem ausentes,.
Concluo
pensando que a democracia é uma fraude, e que é necessário aperfeiçoá-la ou
criar um sistema que corresponda às nossas necessidades humanas em geral porque
assim como o sistema, também precisamos ressignificar o conceito “povo”, e cada
indivíduo é uma parcela do conjunto que forma o “povo”, o mesmo povo que se
cala e legitimando as injustiças que sofremos pelo 1% de ricos cada vez mais
ricos, a elite a quem nunca falta nada.
A
crise política e econômica do país é o fracasso da democracia que construímos. É,
sobretudo o nosso fracasso como povo, como cidadãos ao permitirmos a manutenção
da injustiça histórica através da alienação promovida pelo pacto social
democrático. Assim, fracassados e humilhados no mais
profundo da nossa dignidade, alguns de nós, horrorizados testemunhamos o Brasil
retroceder aos preconceitos, à ignorância, à
mediocridade, ao egoísmo e à ganância do despotismo amparado por
essa democracia que tantos morreram para
que fosse restaurada.
Acontece
que essa democracia não é a que nós merecemos, nem a que nós queremos. A
democracia está por construir-se.
[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Ed. Martin Claret.
São Paulo, 2013,p.19.
[2]
Idem, p. 50.
[3] "Power tends to corrupt, and
absolute power corrupts absolutely in such manner that great men are almost
always bad men." Letter to Bishop Mandell Creighton, April 5, 1887. In
Figgis, J. N. e Laurence, R. V. Historical Essays and Studies, London:
Macmillan, 1907.
[4]
Outras famílias de políticos: Collor/Mello (Alagoas), Calheiros (Alagoas),
Bornhausen (Santa Catarina), Magalhães (Bahia), Garotinho (Rio de Janeiro),
Gomes (Ceará), Maia (Rio Grande do Norte e Rio de janeiro).
Comentários
Postar um comentário